quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

EQUÍVOCOS DO SENSO COMUM


Em regra, a nossa cultura em seu cotidiano não toma por referência a racionalidade cartesiana para refletir sobre os “ditos” que compõem e atribuem forma a trama de nossas relações sociais, isto é, aquele tipo de raciocínio que se pauta num discurso racional onde a lógica da linguagem se comprova e se desenvolve como argumentação, demonstração e verificação no quadro do raciocínio vigente. Normalmente, somos levados a pensar e a agir através de imagens e contextos simbólicos carregados de afecções emocionais, em que a linguagem como ferramenta de comunicação e de dar sentido ao mundo é, obviamente, dissociada do raciocínio lógico e obscurecida enquanto comunicador do mundo.

É óbvio que, do ponto de vista de uma teoria da linguagem, certamente teríamos que aprofundar esta discussão no sentido da superação do paradigma cartesiano, como fizeram Wittgenstein e Paul Ricoeur. Mas, este não é o propósito deste trabalho. O que pretendemos é, certamente, refletir à luz do raciocínio filosófico sobre determinadas frases que surgem como “imagens-guias” e que são capazes de, por não serem devidamente racionalizadas, induzir a equívocos graves as pessoas em suas idéias e em suas ações individuais e coletivas.

Basicamente, será um exercício de reflexão que permitirá às pessoas, sujeitos falantes de conteúdos incertos, aprimorar o grau de compreensão e racionalização em suas falas de “senso comum” .

Mas, o que é senso comum e quais são as suas principais características?

Na expressão “senso comum”, o vocábulo “senso” diz referência a uma espécie de síntese intuitiva, imediata, enquanto o termo “comum” indica o caráter ordinário, vulgar, desta faculdade. Todavia, esses termos conservam uma forte carga de ambiguidades e recobrem uma pluralidade de significações possíveis que variam no tempo e no espaço.

É tanto que, para alguns, a expressão “senso comum” está associada à equivalência da “opinião comum” e se traduz como representações de uma dada cultura ou civilização, impregnadas de uma linguagem simbólica e imaginária quase sempre convencionais e preconceituosas. Neste sentido, “senso comum” é o oposto da razão crítica e o opositor do espírito científico.

Para outros, entretanto, “senso comum” corresponde a uma teia de noções e de aptidões naturais necessárias ao exercício da capacidade de julgar de todos os homens, indispensáveis à sobrevivência e a adaptabilidade social humana, base de todo o pensamento racional e inspiradora das descobertas da ciência. Mas, talvez, ai resida a ideia de “bom senso”, entendido como razão, segundo a conhecida afirmação de René Descartes no Discurso do Método: “A capacidade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é prioritariamente o que denominamos ‘bom senso’ ou razão, é naturalmente igual em todos os homens”1.

De forma mais geral, podemos inferir que o senso comum é um tipo de conhecimento calcado em cima de um saber imediato, não crítico, baseado em observações ingênuas da realidade. Sua base repousa sobre experiências subjetivas que estão frequentemente ligadas à resolução de problemas práticos do cotidiano. É um saber de matiz heterogêneo, proveniente da experiência, sem qualquer seletividade, coerência ou método. Trata-se de uma forma de saber orientado pelo processo de socialização dos indivíduos, que sofre a influência das tradições e de idéias pré-concebidas transmitidas de geração a geração.

Num roteiro de sistematização, podemos identificar quatro características básicas do conhecimento de senso comum:

1.Saber Imediato: valoriza o realismo ingênuo na medida em que toma por verdade as observações ingênuas da realidade. Confunde o real com suas aparências.

2.Saber Subjetivo: Privilegia a observação espontânea que se apresenta sempre contaminada por vivências culturais e psicológicas sobre o modo de ver as coisas e encarar o mundo.

3.Saber Heterogêneo: Orienta-se por uma acumulação não sistematizada ou organizada de representações e imagens-guias espontâneas sobre a realidade.

4.Saber Não-Crítico: Baseia-se em ideias prontas e não refletidas sobre a realidade. Sua visão de mundo é pré-lógica e circunstanciada em relação às coisas ou situações, nunca buscando apreender a universalidade das mesmas nem o porque das suas causas.

De modo que o senso comum integraliza nas pessoas uma conduta de expectativas rotineiramente óbvias que nem sempre corresponde à realidade. Ao dizermos, por exemplo, que o Sol gira em torno da Terra com um período de 24 horas, estamos a dizer uma verdade apoiada no senso comum. O astrônomo, no entanto, apoiados em argumentos de um conhecimento sistematizado e metodologicamente comprovado assegura que é a Terra quem está girando sobre si mesma, o que nos dar a falsa impressão de girar em torno do Sol.

O fato é que nem tudo o que óbvio é certo, mas tudo que é certo nos se apresenta sempre como obviedade. Por vezes, o consenso comum, devido à insistência de sua afirmação, tende a assumir a condição de “senso comum”, e ai acostumamo-nos com o engano. Caímos, portanto, na circularidade repetitiva da obviedade, o que poderíamos chamar de “paralisia da novobiviedade”, ou seja, algo aceito como verdade por falta de raciocínio de falseamento.

No entanto, o senso comum não é de todo dispensável. Ele exerce certa pressão na investigação de fatos que parecem gozar de grande prestígio no conhecimento vulgar. Às vezes, repercute como benefício quando amplia as possibilidades da racionalidade que o analisa e o submete à crítica. Essa reflexão epistemológica se faz necessário a respeito dos elementos de significação do conhecimento, pois é a partir dela que é possível conceber os progressos do ato de conhecer.





1 DESCARTES, René [1637]. Discours de la méthode (1637), in Oeuvres de Descartes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, 11 volumes (1ère éd., 1896-1913) ; nouvelle édition révisée, 1964-1974 ; ré-éd., 1996., vol. 6, p. 1-78.




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