Em regra, a nossa cultura em seu cotidiano não toma por referência a racionalidade cartesiana para refletir sobre os “ditos” que compõem e atribuem forma a trama de nossas relações sociais, isto é, aquele tipo de raciocínio que se pauta num discurso racional onde a lógica da linguagem se comprova e se desenvolve como argumentação, demonstração e verificação no quadro do raciocínio vigente. Normalmente, somos levados a pensar e a agir através de imagens e contextos simbólicos carregados de afecções emocionais, em que a linguagem como ferramenta de comunicação e de dar sentido ao mundo é, obviamente, dissociada do raciocínio lógico e obscurecida enquanto comunicador do mundo.
É óbvio que, do ponto de vista de uma teoria da
linguagem, certamente teríamos que aprofundar esta discussão no sentido da superação
do paradigma cartesiano, como fizeram Wittgenstein e Paul Ricoeur. Mas, este
não é o propósito deste trabalho. O que pretendemos é, certamente, refletir à
luz do raciocínio filosófico sobre determinadas frases que surgem como
“imagens-guias” e que são capazes de, por não serem devidamente racionalizadas,
induzir a equívocos graves as pessoas em suas idéias e em suas ações individuais
e coletivas.
Basicamente, será um exercício de reflexão que
permitirá às pessoas, sujeitos falantes de conteúdos incertos, aprimorar o grau
de compreensão e racionalização em suas falas de “senso comum” .
Mas, o que é senso comum e quais são as suas
principais características?
Na expressão “senso comum”, o vocábulo “senso”
diz referência a uma espécie de síntese intuitiva, imediata, enquanto o termo
“comum” indica o caráter ordinário, vulgar, desta faculdade. Todavia, esses
termos conservam uma forte carga de ambiguidades e recobrem uma pluralidade de
significações possíveis que variam no tempo e no espaço.
É tanto que, para alguns, a expressão “senso
comum” está associada à equivalência da “opinião comum” e se traduz como
representações de uma dada cultura ou civilização, impregnadas de uma linguagem
simbólica e imaginária quase sempre convencionais e preconceituosas. Neste
sentido, “senso comum” é o oposto da razão crítica e o opositor do espírito
científico.
Para outros, entretanto, “senso comum” corresponde
a uma teia de noções e de aptidões naturais necessárias ao exercício da
capacidade de julgar de todos os homens, indispensáveis à sobrevivência e a adaptabilidade
social humana, base de todo o pensamento racional e inspiradora das descobertas
da ciência. Mas, talvez, ai resida a ideia de “bom senso”, entendido como
razão, segundo a conhecida afirmação de René Descartes no Discurso do Método:
“A capacidade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é
prioritariamente o que denominamos ‘bom senso’ ou razão, é naturalmente igual
em todos os homens”1.
De forma mais geral, podemos inferir que o
senso comum é um tipo de conhecimento calcado em cima de um saber imediato, não
crítico, baseado em observações ingênuas da realidade. Sua base repousa sobre
experiências subjetivas que estão frequentemente ligadas à resolução de problemas
práticos do cotidiano. É um saber de matiz heterogêneo, proveniente da
experiência, sem qualquer seletividade, coerência ou método. Trata-se de uma
forma de saber orientado pelo processo de socialização dos indivíduos, que
sofre a influência das tradições e de idéias pré-concebidas transmitidas de
geração a geração.
Num
roteiro de sistematização, podemos identificar quatro características básicas
do conhecimento de senso comum:
1.Saber Imediato: valoriza o realismo ingênuo na medida em que
toma por verdade as observações ingênuas da realidade. Confunde o real com suas
aparências.
2.Saber Subjetivo: Privilegia a observação espontânea que se
apresenta sempre contaminada por vivências culturais e psicológicas sobre o
modo de ver as coisas e encarar o mundo.
3.Saber Heterogêneo: Orienta-se por uma acumulação não sistematizada
ou organizada de representações e imagens-guias espontâneas sobre a realidade.
4.Saber Não-Crítico: Baseia-se em ideias prontas e não refletidas
sobre a realidade. Sua visão de mundo é pré-lógica e circunstanciada em relação
às coisas ou situações, nunca buscando apreender a universalidade das mesmas
nem o porque das suas causas.
De modo que o senso comum integraliza nas
pessoas uma conduta de expectativas rotineiramente óbvias que nem sempre
corresponde à realidade. Ao dizermos, por exemplo, que o Sol gira em torno da
Terra com um período de 24 horas, estamos a dizer uma verdade apoiada no senso
comum. O astrônomo, no entanto, apoiados em argumentos de um conhecimento
sistematizado e metodologicamente comprovado assegura que é a Terra quem está
girando sobre si mesma, o que nos dar a falsa impressão de girar em torno do
Sol.
O fato é que nem tudo o que óbvio é certo, mas
tudo que é certo nos se apresenta sempre como obviedade. Por vezes, o consenso
comum, devido à insistência de sua afirmação, tende a assumir a condição de
“senso comum”, e ai acostumamo-nos com o engano. Caímos, portanto, na
circularidade repetitiva da obviedade, o que poderíamos chamar de “paralisia da
novobiviedade”, ou seja, algo aceito como verdade por falta de raciocínio de
falseamento.
No entanto, o senso comum não é de todo dispensável.
Ele exerce certa pressão na investigação de fatos que parecem gozar de grande
prestígio no conhecimento vulgar. Às vezes, repercute como benefício quando
amplia as possibilidades da racionalidade que o analisa e o submete à crítica.
Essa reflexão epistemológica se faz necessário a respeito dos elementos de
significação do conhecimento, pois é a partir dela que é possível conceber os
progressos do ato de conhecer.
1 DESCARTES,
René [1637]. Discours de la méthode (1637), in Oeuvres de Descartes,
publiées par Charles Adam et Paul Tannery, 11 volumes (1ère éd., 1896-1913) ; nouvelle édition révisée, 1964-1974 ; ré-éd., 1996., vol. 6, p. 1-78.
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