quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A FALTA DE AUTO-CONFIANÇA




 O que será que os filósofos gregos têm ainda a nos dizer? Sabemos que a vida moderna é bem mais confusa e excitante do que os vestígios dos costumes e das práticas do passado grego. Mas, mesmo assim, somos forçados a reconhecer que, depois de dois mil anos de história, é possível identificar fragmentos de ideias, pensamentos, conceitos praticados pelos antigos gregos.

Há quase dois mil e quinhentos anos um filósofo nasceu em Atenas. Seu nome era Sócrates, que viveu de 470 a 399 a. C., um dos mais importantes fundadores da filosofia Ocidental. Dotado de uma capacidade invejável de “parir ideias”, Sócrates foi um defensor intransigente da ideia de que, para nos tornarmos mais seguros e independentes, menos conformistas e vulneráveis à opinião dos outros, era preciso estabelecer um rigor de pensamento sobre nossas vidas. Sócrates foi um visionário e, ao mesmo tempo, um homem prático, mas capaz de sonhar com a possibilidade de a filosofia transformar-nos em homens livres.

Hoje, se visitarmos Atenas, veremos que é uma realidade completamente diferente do tempo de Sócrates, com feições essencialmente modernas, mas com uma áurea, uma atmosfera espiritual, presente nas ruínas de seus monumentos clássicos, que nos inspiram a imaginar como um homem que morreu por suas crenças pode, ainda, ensinar-nos como desenvolver a auto-confiança para defender as nossas.

É sabido que Sócrates não deixou um legado de textos escritos. As fontes mais importantes de informações sobre suas idéias são Platão, Xenofonte e Aristóteles. Nem sequer temos certeza se seu busto é cópia fiel de sua imagem. O pouco que se sabe dele é que foi casado com Xantipa, mulher de gênio irrascível, treinada na arte de fazer partos. 

Homem de feições grotescas, com uma aparência de sátiro, Sócrates jamais calçava sandálias e trocava o manto, após o banho. Mas, a peculiaridade de suas ideias atestava um permanente hábito: o de defender o princípio de que devemos insistir na confiança de nossas próprias ideias, para não corremos o risco de sermos influenciados pelas opiniões alheias.

Sócrates ensinava que havia uma forte semelhança entre o homem e a ovelha. Apesar de não balirmos como elas, muitas vezes, somos seduzidos a seguir o rebanho de modo passivo e negar a separar-se do grupo, por medo de caminhar sozinho. Afinal, por que temos esta tendência cega de seguir os outros ou ceder aos encantos das preferências de pessoas tidas como importantes? Talvez, porque imaginamos que elas têm certeza do que estão fazendo e, porque, é mais cômodo não assumir nenhum risco; por isso, as seguimos.

Apesar de não ter deixado nada escrito de sua autoria, Sócrates criou um dos métodos mais fascinantes de tomada de consciência de si: a Maiêutica, que significa “a arte de fazer parir as ideias”, e que funciona a partir de dois momentos essenciais: o primeiro consiste em permitir que o interlocutor exponha as suas próprias concepções e teorias acerca de algum tema, para em seguida, por meio de um interrogatório hábil, levá-lo a entrar em contradição e a colocar em parênteses a veracidade de suas opiniões acerca de determinado assunto, por se apresentarem absurdas ou contraditórias (IRONIA). O segundo momento visa conduzir o interlocutor, através do próprio raciocínio, a reconhecer a fragilidade de sua argumentação e a colocar-se em sintonia com novas ideias, um conhecimento novo, descortinando a verdade completa (MAIÊUTICA).

Na realidade, o método socrático é uma abordagem pedagógica de raciocínio dialético que visa à produção e validação de ideias e conceitos tomando por base perguntas e respostas. Também conhecido como Maiêutica. A Maiêutica seria, assim, uma espécie de método que consiste em gerar ideias complexas ao tomar por base perguntas simples, porém articuladas dentro de um contexto. 

Sócrates acreditava que o conhecimento não está fora do interior do homem; mas, sim, dentro dele, porém esquecido. Tentar fazê-lo vir à tona é o fundamento do método socrático, que busca, através de uma provocação, não somente fazer emergir o verdadeiro conhecimento, mas também realizar um ato autêntico de fundamentação da opinião que se expressou como falsa. Neste sentido, assevera Brun:

Sócrates convida a uma ‘conversão’, a um virar do avesso a si próprio’... O objetivo do diálogo socrático era matar o mestre no discípulo, inocular-lhe o germe da dúvida metódica, do questionamento purgativo, e preparar-lhe o espírito para uma autêntica aprendizagem que, para Sócrates, não era senão uma lembrança daquilo que já se encontrava em nós. Assim, ‘saber é recordar-se’. (...) Assim, não havia lugar para o dogmatismo nem cabia tampouco, ali, o princípio da autoridade. A verdade era uma busca, não algo dado ‘a priori’. O caminho para ela era o da refutação purgativa. Nesse contexto, o mestre não sabia mais que o discípulo. Ele procurava com este o caminho para a verdade1

É importante salientar que a ironia socrática não se comprazia em difamar o seu interlocutor ou desqualificá-lo diante dos outros ou de si mesmo. Na observação de Romano Guardini: 

A ironia de Sócrates [...] não visa desqualificar o outro, mas ajudá-lo. Ele quer libertá-lo e abri-lo à verdade [...]. A sua ironia procura criar um mal-estar e uma tensão no centro do homem, para que aí proceda o movimento esperado, no próprio interlocutor, se este não puder ser socorrido, no auditor2

Outro aspecto importante do método socrático é a sua  aplicação à educação, na medida em que o professor, tomando por referência à postura de Sócrates, conduz o aluno à compreensão de que o processo de aprender é um processo interno e que acontece como uma atividade permanente da tomada de consciência. A função do professor é tão somente orientar e esclarecer dúvidas, provocar a agudeza da reflexão e ajudar a gerar o poder de pensar; pois, pouco progresso mental se obtém quando o ensino se limitar ao simples fato de transferir conhecimentos.

Impregnado desse sentimento transformador, Sócrates deixa algumas contribuições permanentes para a educação:

a)   O conhecimento possui um valor prático ou moral, isto é, um valor funcional, e,conseqüentemente, é de natureza universal e não individualista;

b)  O processo objetivo para obter-se conhecimento é o de conservação; o sub-objetivoé de reflexão e da organização da própria experiência;

c)   A educação tem por objetivo imediato o desenvolvimento da capacidade de pensar, não apenas ministrar conhecimentos.

Na realidade, a auto-reflexão – apropriadamente expressa no “conhece-te a ti mesmo”, ou seja, “torna-te consciente de tua ignorância”, é um chamamento do homem na procura das verdades universais que representam o caminho para a prática do bem e da virtude. 

Como você deve imaginar, Sócrates exercia, quase cotidianamente, uma pressão muito forte sobre seus concidadãos, pelas ruas de Atenas. Mas, ele fazia isso porque acreditava na visão igualitária de que todos tinham o dever moral de refletir sobre suas vidas e, com certeza, estavam todos equipados com essa capacidade para fazê-lo. Sócrates cultiva a crença de que as pessoas, não importa de que classe social, eram capazes de superar as suas limitações intelectuais, desvencilhar-se da timidez e da preguiça, descortinando suas crenças e defendendo-as com vigor.

Muito embora acreditasse na capacidade de auto-análise, Sócrates sabia que poucas pessoas cultivavam essa prática. Daí, a sua recusa em reconhecer a legitimidade de toda opinião. Mesmo vivendo em um momento histórico em que Atenas se alçava a condição de berço da democracia, Sócrates mantinha sérias reservas a essa visão política de regime democrático.




1. BRUN, Jean. PLATÃO, Apologia de Sócrates Banquete. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 24.
2. Idem. Ibid., p. 83.





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