Talvez, possamos afirmar com certa convicção de
que as condições racionais do fenômeno jurídico dentro de um sistema democrático
na sociedade contemporânea repousam sobre duas categorias vinculativas: a
justificação do direito pela ética e sua legitimação pelo político. Esta afirmação
nos conduz a repensar o caráter de produção do direito e reexaminar os limites
do paradigma jusformalista de raiz positivista no atendimento às expectativas
congruentes dos atores sociais.
Convém, porém,
salientar que todo o a priori do discurso e da argumentação jurídicos
pressupõe sempre uma comunidade ideal que serve de padrão normativo não importando
que tipo de axiologia funcione no direito. Todavia, a questão do valor só pode
ser colocada com pertinência em razão da legitimação da asthésis ou sentimento de existência. E a existência só encontra
eco na experiência da convivência humana, cuja atitude de “viver bem” nos
conduz em direção ao espaço público do politiké,
onde deve ocorrer a discussão ética sobre a legitimidade da garantia normativa
de todo ato jurídico.
A relevância que hoje se põe na garantia e efetivação dos direitos de
base constitucional não poderia ser explicada pelo papel que lhe é reservado
nos ensinamentos jurídicos universitários. Trata-se, com toda evidência, de
pensar o sistema jurídico-normativo constitucional como um aspecto contingencial
da estrutura e do funcionamento das formações sociais contemporâneas: a
produção de um direito relativo à constituição. O direito constitucional,
precisamente em função de seu objeto, se situa no âmago de numerosos desafios
que devem ser identificados e precisados ao pretender se situar no quadro de
uma abordagem de legitimidade.
No plano institucional, o direito designa tudo o que é conforme uma
regra, isto é, o que é, geralmente, autorizado. Se por um lado, ele assegura ao
sujeito a possibilidade de reclamar para si uma ação afirmativa de caráter
jurídico, por outro, ele supõe sempre a existência de leis, de um quadro
jurídico relativo à organização de uma determinada sociedade. A noção de
direito, portanto, não tem nenhum sentido quando vinculada a um indivíduo
isolado. Nesta perspectiva, afirma Eric Weil: “dizer que o direito de um indivíduo
é equidistante da sua potência, é afirmar que ele pode fazer tudo o que não lhe
é impedido de fazer – verdade indubitável e vazia, como toda proposição idêntica”. Neste sentido, o que confere ao direito a
validade de sua existência é a possibilidade que tem de regrar o próprio fundamento
da sociedade humana: as relações entre sujeitos isonomicamente desiguais.
Por outro
lado, o direito é necessário porque a vida coletiva encontra dificuldades na
articulação dos interesses individuais. É pelo fato do direito supor a
existência de regras comuns ou de leis mais ou menos explícitas que implica uma
garantia na reciprocidade entre sujeitos: diante da lei, todos são iguais,
todos podem reivindicar os mesmos direitos que são precisamente aqueles lhes
atribuídos por lei, por que fora disso toda reivindicação singularizada parece
inconcebível.
Outro fato
de similar importância é que as relações humanas são atravessadas por conflitos,
que se regem pela força ou violência. É possível, desde logo, admitir que a
violência ou a força poderia fundar o direito?
É possível conceber que toda relação inicial de forças possa vir a ser
transformada em direito?
Este
questionamento é abordado por Rousseau em sua obra O Contrato Social quando
mostra que a expressão “direito do mais forte” não tem nenhum sentido, em
outras palavras, a força não faz o direito. Pelo contrário, há sempre o risco
da força ser suplantada por uma outra força superior, de maneira que nenhuma
estabilidade restaria garantida. O que se constata, entretanto, é que a força
para conservar o poder tende sempre a se exercer como tal, porque, então, teria
necessidade de se tornar direito? A força reenvia ao estado de natureza, o
direito, ao contrário, pertence à ordem cultural. É uma experiência da convivência
humana, um modo faciende sob cautela,
uma espécie de phronésis de decisão, amparada pela retórica da argumentação.
A força, por sua vez, é um agir desmedido, uma maneira descompensada de impulsionar
o humano a práticas de iniqüidade, uma espécie de phatos da
racionalidade humana, que tem na violência a sua expressão mais sofisticada e
mais deletéria de submissão da vontade humana. Por isso é que entre a força e o
direito há solução de continuidade. E é exatamente pelo recurso à força que ela
própria, numa sociedade democraticamente organizada, está submetida ao império
do direito, e não o contrário.
É obvio que
não é pelo fato de uma sociedade democrática organizar-se em torno da idéia de
direito e das leis que o compõem que todos os membros da comunidade estejam
implicados em respeitá-los automaticamente. Toda ato “fora da lei”, todo
delito, contesta o direito. Mas, é pela própria negação do direito que ele pode
restabelecer sua posição de desautorizamento, sua confiabilidade enquanto
sistema de controle social, operando de forma adequada o seu caráter
sancionador. Muito embora seja no quadro das sanções que visa defender à lei
que a força pode ser utilizada. Mas, esta não deve ser a força mimética da
violência, o artifício degradante que destotaliza o sujeito e agride a sua
dignidade; mas, a contenção sob medida, proporção entre a ofensa e a proteção
ao bem juridicamente tutelado. Mesmo assim, o direito se faz presente com a
legitimidade de censurar, coibir e sancionar o modus operandi do poder. O poder não transcende o direito, não está
acima da lei. O poder que se manifesta “fora da lei” cai no abismo do arbítrio
e nega toda a possibilidade de convivência social, sem a qual estaria suspensa
toda a justificação da experiência jurídica.
Isto também
não significa dizer que o direito transcende o poder, como uma manifestação
espiritual da razão humana. O que pretendemos afirmar é que o direito só tem sentido
e razão de ser quando milita em prol de instituições justas. Isto porque todo
sistema jurídico é relativo a uma sociedade. E toda sociedade é um construto de
relações sociais calcadas em interesses desiguais. Mas, é como se expressa a
ética: para se agir com justeza é preciso, primeiro, conhecer o que não é
justo. Ora, este modo de conceber o direito tangencia o entendimento de que o
direito só é possível num contexto institucional onde as leis têm caráter
temporal e mutável e onde vige o princípio relativo de justiça social.
Por outro
lado, o conceito de contemporaneidade não está ainda amplamente definido ou
sequer compreendido ou mesmo aceito nos dias atuais. Muito se tem escrito sobre
a modernidade e a pós-modernidade, pressupondo-se sempre a descrição de uma
ruptura epistêmica com uma teorização voltada às distinções entre uma e outra
dimensão histórica. Numa orientação mais clarificadora, dir-se-ia que a
modernidade, em regra, ostenta um discurso da razão inteligível, que se refere
a um estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a
partir do século XVII, e cuja influência tornou-se mundializada, consistindo
num processo de racionalização do mundo que se manifesta de forma dual: quer
pela contextualização ético-filosófica, quer pela materialização
técnico-produtiva, justificada pela ideologia da burguesia e pela racionalidade
de acumulação de riqueza do capitalismo liberal.
Um dos mais
expressivos pensadores da modernidade é, sem dúvida, Max Weber, para quem a modernidade
é vista aqui como processo de racionalização do mundo, de diferenciação e autonomia
das esferas social, econômica, política e cultural, embora circunscrita à
racionalidade instrumental-cognitiva da ciência e da tecnologia.
Segundo Liszt
Vieira, a modernidade se apresenta na perspectiva weberiana como um ethos dessacralizado, cujos marcos são:
“a secularização, a ética protestante do trabalho, que influenciou o desenvolvimento
do capitalismo, a burocratização do econômico e do político, levando à ameaça
da ‘jaula de ferro’ da burocracia, à monetarização dos valores, o predomínio da
dominação ‘racional-legal’. A razão instrumental da ciência levou ao ‘desencantamento
do mundo’, à sua ‘dessacralização’, pois agora a ciência, na explicação do
mundo, substituiu a religião, antes preocupada, juntamente com a Filosofia, com
o sentido da vida. A Modernidade ordenou o mundo, mas deixou-o sem sentido”.
Do ponto de
vista de uma visão político-jurídica, a modernidade estabelece uma existência
essencialmente dual: por um lado, consubstancia o desenvolvimento das instituições
sociais e sua difusão em escala mundial, permitindo a vigência de oportunidades
bem maiores para o sucesso dos seres humanos e uma arrojada forma de degradação
das condições de vida, submetendo os indivíduos à disciplina de um trabalho
maçante e repetitivo. Por outro lado, apresenta um lado sombrio, visível no uso
arbitrário do poder político em episódios de totalitarismos e no poder
destrutivo das “forças de produção”, que iriam exercer uma forte ação
destrutiva em relação ao meio ambiente natural, além de contrastar promessas de
segurança e confiança com situações de perigo e risco.
Numa
orientação diferenciada, a pós-modernidade se apresenta como uma ruptura, uma
reação que visa desconstruir o modernismo (visto como expressão de um status quo), a partir de uma perspectiva
deliberadamente crítica que questiona, resiste e reage contra códigos culturais
exploradores e filiações sociais e políticas movidas pelo individualismo moral,
além de realçar a perda da crença no ideário do “progresso” que, com toda
evidência, tem repercutido no desfazimento das “narrativas” históricas.
A
contemporaneidade, por sua vez, traz consigo a experiência destes dois
registros simbólicos e imaginários, cuja representação se interpenetram numa
dimensão do tempo que se estrutura no campo de uma política do acontecimento,
de situações sem relação com o possível, onde a existência dos homens e das sociedades
são tocadas pelo espírito da continuidade, da indeterminação das referências e
das identidades, num mundo cada vez mais de escassez e de contingência. É um modo de vida que pressupõe a saturação
dos espaços e do tempo na comunidade, cujo regime de interioridade não se
baseia mais na lei nem na harmonia do ethos
(costumes, maneira de ser, caráter), senão em “existências inexistentes”, onde
as relações recíprocas são afetadas por novos modelos de sensibilidade.
Aqui, nesta
nova ordem de composição da Politéia contemporânea, emergem acontecimentos, situações
com novas tessituras, contextos com novos entrelaçamentos, instituições com novas
formas de identidade, e acelerações que criam novas formas sociais, de onde
emergem novos objetos reordenados com novas vicissitudes, flutuantes na delimitação
de suas fronteiras, tocados apenas pela significação sem sentido de um sujeito
agitado pela dúvida, que mora no objetivo incompreensível de seu desejo.
Dir-se-ia que a contemporaneidade é a sede lacunar de uma relação sem verdade,
de um acontecimento sem relação com o possível, de uma existência que pode ser
pensada como a expressão de uma transeuncia de sujeitos sem vínculos
obrigatórios com o lócus antropológico que identifica sociedade, cultura e indivíduo
como a manifestação comunal da partilha do logos.
Ora, em torno deste percurso, há apenas uma ecologia da desesperança, do
medo e do temor, a ser vivida como uma experiência indeclinável, intransferível,
num espaço democraticamente perturbado pela saturação dos elementos políticos
imersos num itinerário de assimetria e dissonomia social.
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