quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

DIREITO E CONTEMPORANEIDADE



Talvez, possamos afirmar com certa convicção de que as condições racionais do fenômeno jurídico dentro de um sistema democrático na sociedade contemporânea repousam sobre duas categorias vinculativas: a justificação do direito pela ética e sua legitimação pelo político. Esta afirmação nos conduz a repensar o caráter de produção do direito e reexaminar os limites do paradigma jusformalista de raiz positivista no atendimento às expectativas congruentes dos atores sociais.

Convém, porém, salientar que todo o a priori do discurso e da argumentação jurídicos pressupõe sempre uma comunidade ideal que serve de padrão normativo não importando que tipo de axiologia funcione no direito. Todavia, a questão do valor só pode ser colocada com pertinência em razão da legitimação da asthésis ou sentimento de existência. E a existência só encontra eco na experiência da convivência humana, cuja atitude de “viver bem” nos conduz em direção ao espaço público do politiké, onde deve ocorrer a discussão ética sobre a legitimidade da garantia normativa de todo ato jurídico.

A relevância que hoje se põe na garantia e efetivação dos direitos de base constitucional não poderia ser explicada pelo papel que lhe é reservado nos ensinamentos jurídicos universitários. Trata-se, com toda evidência, de pensar o sistema jurídico-normativo constitucional como um aspecto contingencial da estrutura e do funcionamento das formações sociais contemporâneas: a produção de um direito relativo à constituição. O direito constitucional, precisamente em função de seu objeto, se situa no âmago de numerosos desafios que devem ser identificados e precisados ao pretender se situar no quadro de uma abordagem de legitimidade.   

No plano institucional, o direito designa tudo o que é conforme uma regra, isto é, o que é, geralmente, autorizado. Se por um lado, ele assegura ao sujeito a possibilidade de reclamar para si uma ação afirmativa de caráter jurídico, por outro, ele supõe sempre a existência de leis, de um quadro jurídico relativo à organização de uma determinada sociedade. A noção de direito, portanto, não tem nenhum sentido quando vinculada a um indivíduo isolado. Nesta perspectiva, afirma Eric Weil: “dizer que o direito de um indivíduo é equidistante da sua potência, é afirmar que ele pode fazer tudo o que não lhe é impedido de fazer – verdade indubitável e vazia, como toda proposição idêntica”.  Neste sentido, o que confere ao direito a validade de sua existência é a possibilidade que tem de regrar o próprio fundamento da sociedade humana: as relações entre sujeitos isonomicamente desiguais.

Por outro lado, o direito é necessário porque a vida coletiva encontra dificuldades na articulação dos interesses individuais. É pelo fato do direito supor a existência de regras comuns ou de leis mais ou menos explícitas que implica uma garantia na reciprocidade entre sujeitos: diante da lei, todos são iguais, todos podem reivindicar os mesmos direitos que são precisamente aqueles lhes atribuídos por lei, por que fora disso toda reivindicação singularizada parece inconcebível.

Outro fato de similar importância é que as relações humanas são atravessadas por conflitos, que se regem pela força ou violência. É possível, desde logo, admitir que a violência ou a força poderia fundar o direito?  É possível conceber que toda relação inicial de forças possa vir a ser transformada em direito?

Este questionamento é abordado por Rousseau em sua obra O Contrato Social quando mostra que a expressão “direito do mais forte” não tem nenhum sentido, em outras palavras, a força não faz o direito. Pelo contrário, há sempre o risco da força ser suplantada por uma outra força superior, de maneira que nenhuma estabilidade restaria garantida. O que se constata, entretanto, é que a força para conservar o poder tende sempre a se exercer como tal, porque, então, teria necessidade de se tornar direito? A força reenvia ao estado de natureza, o direito, ao contrário, pertence à ordem cultural. É uma experiência da convivência humana, um modo faciende sob cautela, uma espécie de phronésis de decisão, amparada pela retórica da argumentação. A força, por sua vez, é um agir desmedido, uma maneira descompensada de impulsionar o humano a práticas de iniqüidade, uma espécie de phatos da racionalidade humana, que tem na violência a sua expressão mais sofisticada e mais deletéria de submissão da vontade humana. Por isso é que entre a força e o direito há solução de continuidade. E é exatamente pelo recurso à força que ela própria, numa sociedade democraticamente organizada, está submetida ao império do direito, e não o contrário.

É obvio que não é pelo fato de uma sociedade democrática organizar-se em torno da idéia de direito e das leis que o compõem que todos os membros da comunidade estejam implicados em respeitá-los automaticamente. Toda ato “fora da lei”, todo delito, contesta o direito. Mas, é pela própria negação do direito que ele pode restabelecer sua posição de desautorizamento, sua confiabilidade enquanto sistema de controle social, operando de forma adequada o seu caráter sancionador. Muito embora seja no quadro das sanções que visa defender à lei que a força pode ser utilizada. Mas, esta não deve ser a força mimética da violência, o artifício degradante que destotaliza o sujeito e agride a sua dignidade; mas, a contenção sob medida, proporção entre a ofensa e a proteção ao bem juridicamente tutelado. Mesmo assim, o direito se faz presente com a legitimidade de censurar, coibir e sancionar o modus operandi do poder. O poder não transcende o direito, não está acima da lei. O poder que se manifesta “fora da lei” cai no abismo do arbítrio e nega toda a possibilidade de convivência social, sem a qual estaria suspensa toda a justificação da experiência jurídica.

Isto também não significa dizer que o direito transcende o poder, como uma manifestação espiritual da razão humana. O que pretendemos afirmar é que o direito só tem sentido e razão de ser quando milita em prol de instituições justas. Isto porque todo sistema jurídico é relativo a uma sociedade. E toda sociedade é um construto de relações sociais calcadas em interesses desiguais. Mas, é como se expressa a ética: para se agir com justeza é preciso, primeiro, conhecer o que não é justo. Ora, este modo de conceber o direito tangencia o entendimento de que o direito só é possível num contexto institucional onde as leis têm caráter temporal e mutável e onde vige o princípio relativo de justiça social.

Por outro lado, o conceito de contemporaneidade não está ainda amplamente definido ou sequer compreendido ou mesmo aceito nos dias atuais. Muito se tem escrito sobre a modernidade e a pós-modernidade, pressupondo-se sempre a descrição de uma ruptura epistêmica com uma teorização voltada às distinções entre uma e outra dimensão histórica. Numa orientação mais clarificadora, dir-se-ia que a modernidade, em regra, ostenta um discurso da razão inteligível, que se refere a um estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII, e cuja influência tornou-se mundializada, consistindo num processo de racionalização do mundo que se manifesta de forma dual: quer pela contextualização ético-filosófica, quer pela materialização técnico-produtiva, justificada pela ideologia da burguesia e pela racionalidade de acumulação de riqueza do capitalismo liberal.

Um dos mais expressivos pensadores da modernidade é, sem dúvida, Max Weber, para quem a modernidade é vista aqui como processo de racionalização do mundo, de diferenciação e autonomia das esferas social, econômica, política e cultural, embora circunscrita à racionalidade instrumental-cognitiva da ciência e da tecnologia.

Segundo Liszt Vieira, a modernidade se apresenta na perspectiva weberiana como um ethos dessacralizado, cujos marcos são: “a secularização, a ética protestante do trabalho, que influenciou o desenvolvimento do capitalismo, a burocratização do econômico e do político, levando à ameaça da ‘jaula de ferro’ da burocracia, à monetarização dos valores, o predomínio da dominação ‘racional-legal’. A razão instrumental da ciência levou ao ‘desencantamento do mundo’, à sua ‘dessacralização’, pois agora a ciência, na explicação do mundo, substituiu a religião, antes preocupada, juntamente com a Filosofia, com o sentido da vida. A Modernidade ordenou o mundo, mas deixou-o sem sentido”.

Do ponto de vista de uma visão político-jurídica, a modernidade estabelece uma existência essencialmente dual: por um lado, consubstancia o desenvolvimento das instituições sociais e sua difusão em escala mundial, permitindo a vigência de oportunidades bem maiores para o sucesso dos seres humanos e uma arrojada forma de degradação das condições de vida, submetendo os indivíduos à disciplina de um trabalho maçante e repetitivo. Por outro lado, apresenta um lado sombrio, visível no uso arbitrário do poder político em episódios de totalitarismos e no poder destrutivo das “forças de produção”, que iriam exercer uma forte ação destrutiva em relação ao meio ambiente natural, além de contrastar promessas de segurança e confiança com situações de perigo e risco.

Numa orientação diferenciada, a pós-modernidade se apresenta como uma ruptura, uma reação que visa desconstruir o modernismo (visto como expressão de um status quo), a partir de uma perspectiva deliberadamente crítica que questiona, resiste e reage contra códigos culturais exploradores e filiações sociais e políticas movidas pelo individualismo moral, além de realçar a perda da crença no ideário do “progresso” que, com toda evidência, tem repercutido no desfazimento das “narrativas” históricas.

A contemporaneidade, por sua vez, traz consigo a experiência destes dois registros simbólicos e imaginários, cuja representação se interpenetram numa dimensão do tempo que se estrutura no campo de uma política do acontecimento, de situações sem relação com o possível, onde a existência dos homens e das sociedades são tocadas pelo espírito da continuidade, da indeterminação das referências e das identidades, num mundo cada vez mais de escassez e de contingência.  É um modo de vida que pressupõe a saturação dos espaços e do tempo na comunidade, cujo regime de interioridade não se baseia mais na lei nem na harmonia do ethos (costumes, maneira de ser, caráter), senão em “existências inexistentes”, onde as relações recíprocas são afetadas por novos modelos de sensibilidade.

Aqui, nesta nova ordem de composição da Politéia contemporânea, emergem acontecimentos, situações com novas tessituras, contextos com novos entrelaçamentos, instituições com novas formas de identidade, e acelerações que criam novas formas sociais, de onde emergem novos objetos reordenados com novas vicissitudes, flutuantes na delimitação de suas fronteiras, tocados apenas pela significação sem sentido de um sujeito agitado pela dúvida, que mora no objetivo incompreensível de seu desejo. 

Dir-se-ia que a contemporaneidade é a sede lacunar de uma relação sem verdade, de um acontecimento sem relação com o possível, de uma existência que pode ser pensada como a expressão de uma transeuncia de sujeitos sem vínculos obrigatórios com o lócus antropológico que identifica sociedade, cultura e indivíduo como a manifestação comunal da partilha do logos. Ora, em torno deste percurso, há apenas uma ecologia da desesperança, do medo e do temor, a ser vivida como uma experiência indeclinável, intransferível, num espaço democraticamente perturbado pela saturação dos elementos políticos imersos num itinerário de assimetria e dissonomia social.



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