“Subjetividade” (...) designação escolhida
como que para salvar nossa parte de espiritualidade. Por que subjetividade,
senão para descer ao fundo do sujeito sem perder o privilégio que este encarna,
essa presença privada que o corpo, meu corpo sensível, me faz viver como minha?
Mas se a pretendida “subjetividade” é o outro no lugar de mim, ela não é subjetiva
nem objetiva, o outro é sem interioridade, o anônimo é seu nome, o fora seu
pensamento (...).
Maurice Blanchot.
L’écriture du désastre. Paris. Gallimard,
1980.
E
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ste trecho da obra de Blanchot nos
propicia trabalhar e refletir sobre a questão do investimento libidinal na
constituição da estrutura neurótica da personalidade do sujeito contemporâneo.
A problemática já é anunciada por Freud no seu Mal-Estar da Civilização como proposta
esclarecedora da condição fenomênica do sujeito moderno face à experiência
angustiante do “desencantamento do mundo”, a partir do século XIX, na cultura
ocidental.
Mas, é com a modernidade
que uma inédita concepção se estabelece com a convicção de que o sujeito,
enquanto representação da liberdade humana, é uma exigência infinita de
autonomia do espírito e da liberdade enquanto condição particularizada de existência.
O homem moderno é descrito como o desabrochar do Ser enquanto subjetividade,
cujo desenvolvimento de suas faculdades o permite existir e viver no alcance e
no limite de uma liberdade concebida em termos de autonomia. Hegel já chamava
atenção para o fato de que os gregos, por exemplo, se sabiam livres enquanto
cidadãos, mas nem Platão, nem Aristóteles conheceram a “noção” transmutativa de
que o “indivíduo” incorporava uma experiência calcada na exigência de ser livre
por ser livre.
É a partir do
desmoronamento da cosmologia aristotélica (aquela matriz que representava os
três grandes pilares da verdade para o homem: o pensar filosófico, o pensar
científico e o pensar religioso), solidamente construída e disseminada através
de dois milênios, que se pode adentrar nessa discussão referente ao sujeito. É
exatamente a partir dessa idéia do sujeito como algo que é determinado por uma
ação exterior e a qual deve obrigatoriamente se submeter, que é possível
trabalhar a questão do sujeito e da subjetividade. Nesse momento histórico, uma
exigência se faz imperiosa: a construção de um novo paradigma que permitisse
explicar a relação do homem com o mundo ao seu redor. Esse novo paradigma surgiria
no bojo do pensamento cartesiano.
É com Descartes, que o
termo muda radicalmente de sentido: a palavra sujeito transmuda-se e passa a
ser reservado para designar o ser que conhece: o cognoscente, em oposição aos
seres que são conhecidos (cognocíveis) e que passam a ser chamados de objetos.
Esta nova significação do termo advém da revolução filosófica introduzida por
Descartes no pensamento moderno quando postula a dúvida metódica do sujeito
através do seu Cogito, ergo sum
(Penso, logo existo). Para Descartes, o único ser (possivelmente chamado de
sujeito no sentido metafísico) que poderia colocar a realidade em dúvida seria
o eu pensante do cogito. Mas, segundo
ele, a dúvida tem um limite: eu posso duvidar de tudo, mas não de mim que sou o
único que duvida. Para Descartes, que se prende à idéia segundo a qual a matéria
existe como res extensa, toda a base sólida de reconstrução do
conhecimento repousa sobre este núcleo que a dúvida metódica não consegue obscurecer:
Cogito, ergo sum (Penso, logo
existo).
Descartes propõe a
formulação de que o sujeito moderno é um sujeito indivisível, individualmente
unificado no interior de si mesmo, não podendo ser dividido, uma entidade
singular, distintiva e única, centrado no mundo da razão e constituído por sua
capacidade de raciocinar e pensar, é uma concepção das idéias inatas do
pensamento. Daí, dizer-se que o sujeito da razão, racional e pensante,
consciente e cognoscente, é chamado de “sujeito cartesiano”. De modo que o
termo sujeito não se aplicará mais a qualquer tipo de ser, senão unicamente ao
eu pensante.
Por outro lado, em nossa
cultura ocidental, o termo sujeito vem do latim “subjectum”, particípio passado
do verbo “subjicere”, que significa “submetido” ou “posto debaixo”, obrigado, dependente, constrangido,
adstrito. E aí, talvez, possamos dizer como Sartre: “o homem não possui outro
legislador senão ele mesmo”. Neste sentido, o sujeito da modernidade é um
“problematizado”, capaz de autodeterminação, mas também suscetível à determinação
de outrem, o que nos permite inferir que a liberdade não se apresenta tão livre
assim para poder, de fato, ela própria, por si mesma, libertar-se.
A psicanálise freudiana
coloca em discussão o estatuto do sujeito cartesiano e propõe um sujeito da
“desrazão”, um descentrado de um mundo e de uma vida sem sentidos, lançado à
sua própria sorte, numa realidade cada vez mais indiferente ao seu destino.
Este sujeito situado no lugar do ocultamento, no centro do inconsciente, referenciado
a uma estrutura dividida, a um Eu que não mais domina, desamparado e perdido em
seus próprios limites, condenado a inventar o seu próprio destino, é chamado de
“sujeito freudiano”.
De fato, Freud abriria
uma “ferida simbólica” no narcisismo originário da civilização ocidental e colocaria
o sujeito cartesiano numa condição de subjetividade clivada impulsionada pelo desejo
em sua divisão radical, apesar do cogito cartesiano ter representado uma
espécie de matriz subjetiva para o advento da psicanálise. O fato, porém, é que
Freud vai negar o estatuto do sujeito cartesiano enquanto dimensão subjetiva
ancorada numa tradição fenomenológica de caráter racional. Por isso, em
princípio, a psicanálise é uma doutrina que se recusa a reconhecer as
interpretações provenientes da corrente fenomenológica, principalmente na
medida em que o inconsciente não é uma dimensão da razão, como fica claramente
delineado na subversão freudiana: o inconsciente se opõe a qualquer leitura que
interpreta o sujeito como equivalente da consciência.
A concepção de subjetividade
no pensamento freudiano tem como foco principal o entendimento de que a
experiência de subjetividade vivida pelo sujeito do inconsciente radica numa
clivagem subjetiva fundada numa função de operação radical, o recalque, que
determina o inconsciente. E o Eu passa apenas a ser uma imagem e não a verdade
do sujeito. O recalque, neste sentido, é a própria condição do estabelecimento
da organização psíquica neurótica.
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