quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O DESCENTRAMENTO DO SUJEITO DA MODERNIDADE


“Subjetividade” (...) designação escolhida como que para salvar nossa parte de espiritualidade. Por que subjetividade, senão para descer ao fundo do sujeito sem perder o privilégio que este encarna, essa presença privada que o corpo, meu corpo sensível, me faz viver como minha? Mas se a pretendida “subjetividade” é o outro no lugar de mim, ela não é subjetiva nem objetiva, o outro é sem interioridade, o anônimo é seu nome, o fora seu pensamento (...).

                                                                                       Maurice Blanchot.
                                               L’écriture du désastre. Paris. Gallimard, 1980. 



      E
ste trecho da obra de Blanchot nos propicia trabalhar e refletir sobre a questão do investimento libidinal na constituição da estrutura neurótica da personalidade do sujeito contemporâneo. A problemática já é anunciada por Freud no seu Mal-Estar da Civilização como proposta esclarecedora da condição fenomênica do sujeito moderno face à experiência angustiante do “desencantamento do mundo”, a partir do século XIX, na cultura ocidental.

Mas, é com a modernidade que uma inédita concepção se estabelece com a convicção de que o sujeito, enquanto representação da liberdade humana, é uma exigência infinita de autonomia do espírito e da liberdade enquanto condição particularizada de existência. O homem moderno é descrito como o desabrochar do Ser enquanto subjetividade, cujo desenvolvimento de suas faculdades o permite existir e viver no alcance e no limite de uma liberdade concebida em termos de autonomia. Hegel já chamava atenção para o fato de que os gregos, por exemplo, se sabiam livres enquanto cidadãos, mas nem Platão, nem Aristóteles conheceram a “noção” transmutativa de que o “indivíduo” incorporava uma experiência calcada na exigência de ser livre por ser livre.

É a partir do desmoronamento da cosmologia aristotélica (aquela matriz que representava os três grandes pilares da verdade para o homem: o pensar filosófico, o pensar científico e o pensar religioso), solidamente construída e disseminada através de dois milênios, que se pode adentrar nessa discussão referente ao sujeito. É exatamente a partir dessa idéia do sujeito como algo que é determinado por uma ação exterior e a qual deve obrigatoriamente se submeter, que é possível trabalhar a questão do sujeito e da subjetividade. Nesse momento histórico, uma exigência se faz imperiosa: a construção de um novo paradigma que permitisse explicar a relação do homem com o mundo ao seu redor. Esse novo paradigma surgiria no bojo do pensamento cartesiano.

É com Descartes, que o termo muda radicalmente de sentido: a palavra sujeito transmuda-se e passa a ser reservado para designar o ser que conhece: o cognoscente, em oposição aos seres que são conhecidos (cognocíveis) e que passam a ser chamados de objetos. Esta nova significação do termo advém da revolução filosófica introduzida por Descartes no pensamento moderno quando postula a dúvida metódica do sujeito através do seu Cogito, ergo sum (Penso, logo existo). Para Descartes, o único ser (possivelmente chamado de sujeito no sentido metafísico) que poderia colocar a realidade em dúvida seria o eu pensante do cogito. Mas, segundo ele, a dúvida tem um limite: eu posso duvidar de tudo, mas não de mim que sou o único que duvida. Para Descartes, que se prende à idéia segundo a qual a matéria existe como res extensa, toda a base sólida de reconstrução do conhecimento repousa sobre este núcleo que a dúvida metódica não consegue obscurecer: Cogito, ergo sum (Penso, logo existo).

Descartes propõe a formulação de que o sujeito moderno é um sujeito indivisível, individualmente unificado no interior de si mesmo, não podendo ser dividido, uma entidade singular, distintiva e única, centrado no mundo da razão e constituído por sua capacidade de raciocinar e pensar, é uma concepção das idéias inatas do pensamento. Daí, dizer-se que o sujeito da razão, racional e pensante, consciente e cognoscente, é chamado de “sujeito cartesiano”. De modo que o termo sujeito não se aplicará mais a qualquer tipo de ser, senão unicamente ao eu pensante.

Por outro lado, em nossa cultura ocidental, o termo sujeito vem do latim “subjectum”, particípio passado do verbo “subjicere”, que significa “submetido” ou “posto debaixo”, obrigado, dependente, constrangido, adstrito. E aí, talvez, possamos dizer como Sartre: “o homem não possui outro legislador senão ele mesmo”. Neste sentido, o sujeito da modernidade é um “problematizado”, capaz de autodeterminação, mas também suscetível à determinação de outrem, o que nos permite inferir que a liberdade não se apresenta tão livre assim para poder, de fato, ela própria, por si mesma, libertar-se.

A psicanálise freudiana coloca em discussão o estatuto do sujeito cartesiano e propõe um sujeito da “desrazão”, um descentrado de um mundo e de uma vida sem sentidos, lançado à sua própria sorte, numa realidade cada vez mais indiferente ao seu destino. Este sujeito situado no lugar do ocultamento, no centro do inconsciente, referenciado a uma estrutura dividida, a um Eu que não mais domina, desamparado e perdido em seus próprios limites, condenado a inventar o seu próprio destino, é chamado de “sujeito freudiano”.

De fato, Freud abriria uma “ferida simbólica” no narcisismo originário da civilização ocidental e colocaria o sujeito cartesiano numa condição de subjetividade clivada impulsionada pelo desejo em sua divisão radical, apesar do cogito cartesiano ter representado uma espécie de matriz subjetiva para o advento da psicanálise. O fato, porém, é que Freud vai negar o estatuto do sujeito cartesiano enquanto dimensão subjetiva ancorada numa tradição fenomenológica de caráter racional. Por isso, em princípio, a psicanálise é uma doutrina que se recusa a reconhecer as interpretações provenientes da corrente fenomenológica, principalmente na medida em que o inconsciente não é uma dimensão da razão, como fica claramente delineado na subversão freudiana: o inconsciente se opõe a qualquer leitura que interpreta o sujeito como equivalente da consciência.

A concepção de subjetividade no pensamento freudiano tem como foco principal o entendimento de que a experiência de subjetividade vivida pelo sujeito do inconsciente radica numa clivagem subjetiva fundada numa função de operação radical, o recalque, que determina o inconsciente. E o Eu passa apenas a ser uma imagem e não a verdade do sujeito. O recalque, neste sentido, é a própria condição do estabelecimento da organização psíquica neurótica.



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