quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

O QUE É SER FELIZ?

Estar sozinho não é sentir-se só.
É apenas permanecer por um instante
em “parêntesis”.

Djason B. Della Cunha







A sociedade contemporânea do século XXI está definitivamente marcada por uma crença de que nascemos para sermos felizes. Parece que do ponto de vista do sentimento de evidência, a felicidade, até por definição, causa interesse em todo mundo: todos desejam ser felizes. E ai neste devaneio de expectativas e buscas, a felicidade se transforma numa “mercadoria fetiche”, objeto de cursos e raciocínios, visões, sentimentos e êxtases. Esse paroxismo mercadológico da sociedade de consumo é o que podemos denominar de obsessão por um sentimento: “a busca da felicidade e do design humano”. 

Neste sentido, o primeiro argumento que confere a esta crença uma razão justificante é a de que a busca da felicidade é obrigatória: desejamos e podemos ser incondicionalmente felizes. E, sob nenhuma hipótese, este desejo deve mudar de orientação, o que significa dizer que não podemos desejar a infelicidade. E se, por acaso, alguém nutrir este desejo, é sinal que está sofrendo de um desequilíbrio psíquico, alguma coisa de patológico está acontecendo com a pessoa. 

Na verdade, essa ideia é tão poderosamente veiculada pela mass midia na manipulação dos interesses e da consciência das pessoas que criamos uma razão justificadora, de caráter dogmático, de que a única coisa que justifica a vida hoje em dia é acreditarmos que somos programados para buscar a felicidade, não somente desfrutá-la, mas querê-la incessantemente, e não importa o preço que tenhamos que pagar para consegui-la. 

Isto me parece uma reinscrição em contexto contemporâneo da doutrina filosófico-moral do hedonismo, rebatizada pela lógica utilitária da sociedade de consumo e extravazada até as suas últimas consequências no jogo moral do desejo.

O termo hedonismo vem do grego hedonê, traduzido comumente como “prazer”, “vontade”, e que pode ser afirmado como uma busca incondicional pelo prazer, considerado o supremo bem da vida humana. Seus mais antigos representantes foram Aristipo de Cirene e Epicuro. O fato, porém, é que o modo como os gregos buscavam alcançar o prazer ou mesmo a felicidade destoa inteiramente da maneira como os contemporâneos da sociedade do século XXI vivenciam essa busca. Os raciocínios dos gregos, por exemplo, sobre a felicidade giravam em torno da filosofia como sabedoria. Ser feliz, portanto, para os gregos, implicava em atingir a condição de sábio, embora a sabedoria como felicidade não fosse uma felicidade qualquer. Neste sentido, a felicidade do sábio não seria uma recompensa da virtude, mas a própria virtude em si mesma descrita pelo nome de eudaimonia (beatitude): a vida verdadeiramente feliz. 

 Porém, em contexto moderno, a doutrina do hedonismo procura fundamentar-se em uma concepção mais ampla de prazer, geralmente interpretada como “felicidade” para o maior número de pessoas. Entretanto, para os contemporâneos, a felicidade assume outras formas de sentimentos: às vezes, é buscada nas ilusões e nas diversões, nas mentiras e nos esquecimentos, nos remédios, nas drogas, nos ansiolíticos e antidepressivos, que seriam ao mesmo tempo um tônico e um euforizante.
No entendimento da linguagem comum, o termo hedonismo sofre derivação do significado original e designa uma atitude, uma vontade, direcionada para a busca egoísta de prazeres momentâneos. Com essa visão, o “hedonismo” empobrece a demanda dos sentidos, assumindo conotação pejorativa, sendo visto normalmente como uma prática decadente, uma expressão paroxística do prazer.

Esse modo egoísta do prazer e, mesmo da felicidade, tem sido fortemente criticado por autores modernos e contemporâneos que afirmam, cada um a sua maneira, que o prazer e a felicidade não podem ser obtidos diretamente, senão indiretamente. Há um claro entendimento por parte desses autores que fracassamos na obtenção do prazer e da felicidade toda vez que os procuramos deliberadamente. Este insucesso na busca do prazer e da felicidade é chamado por esses autores de paradoxo do hedonismo. 

Paradoxo é uma palavra que deriva do grego (paradoxon), porém bem mais fortemente do latin (paradoxum),  composta do prefixo “para” – que quer dizer “contrário a”, “alterado” ou “oposto de”, conjugada com o sufixo nominal “doxa”, que significa opinião. Paradoxo, portanto, seria uma afirmação aparentemente verossímil que traz uma contradição lógica, no sentido de que é o “oposto daquilo que se  afirma ser a verdade”.

Do ponto de vista da filosofia moral, o paradoxo ocupa um papel nuclear nos debates de caráter ético, na medida em que a linguagem que usamos para definir uma realidade relacional conflita com a qualidade desta relação. Por exemplo, a contradição gerada pela declaração de amor feita a uma pessoa que não se coaduna com a conduta que a faz sofrer por traição. 

Certamente, se fizermos uma consulta pelas páginas da internet, acharemos uma expressiva quantidade de informações de forte apelo de como conseguir ser feliz. Na verdade, são conselhos que sugerem vários meios de se conseguir a felicidade: os sete hábitos, as nove escolhas, os dez segredos, os mil pensamentos que supostamente praticados atraem a felicidade. Atualmente, outra prática que parece assegurar o aumento da felicidade é a ingerência medicamentosa. 

Se fizermos um apanhado pelas informações que circulam nos órgãos oficiais de governo, mais de 100 milhões de receitas médicas, por ano, para antidepressivos são concedidas.  O prozac tem sido a droga mais procurada, pelo fato de ser receitada sob a orientação de médicos que afirmam ser uma droga limpa, eficiente, sem risco de efeitos colaterais. O fato é que, mesmo que tenhamos à disposição todo este arsenal de comedimentos que nos conduzem ao encontro da felicidade, a depressão e a ansiedade estão aumentando. 

Talvez, esta seja a expressão mais degradada da felicidade, que pode ser representada por esta frase: felicidade é prazer em excesso, é extravasamento na forma de viver as emoções. Neste caso, a felicidade como sentimento se degrada, uma vez que, privada de lucidez, se apresenta sempre como um desconforto, uma versão ludibriada das emoções. É como diz o político William Bennett: “A felicidade é como um gato, se tentar persuadi-lo a vir até você, ele o evitará; nunca virá. Mas se não prestar atenção nele e se ocupar da sua vida, encontrá-lo-á a se esfregar em suas pernas e a pular em seu colo”.

Na realidade, o enfrentamento dessa realidade que nos afronta consiste na pretensão de desmistificar essa onda mercadológica do prazer e da felicidade, que se pode adquirir ou comprar nos balcões de produtos ou clínicas de tratamento por preços os mais variados, com uma facilidade inebriante.


Por outro lado, buscar tratar o tema de maneira mais  apropriado, mostrando a importância que hoje tem a busca do prazer e da felicidade na motivação da vida das pessoas, sem descurar dos aspectos objetivos e subjetivos da questão, mas reservando à compreensão o sentido que isto representa na saúde física e mental dos indivíduos.  

Talvez, fosse mais interessante e possível se falar de realização. No plano da existência, ser feliz é o sujeito que adota como projeto para si a busca de realização. Sim, mas a realização é algo que se dá por via da mediação: mediação da realidade, dos objetos e dos outros. Como atingir, de fato, a realização pessoal e ser feliz se nela está implícita a dependência? 

Para por fim a essa armadilha do pensamento, podemos pontuar como possibilidade a esperança como “felicidade em ato”. Se todo projeto de realização implica em dependência e se toda dependência requer a possibilidade da esperança, ser feliz é viver “desesperadamente esperançoso” e desejar uma felicidade mediada, compartilhada, em que cada ato é construído num tempo do possível, não como um dado pronto um ou achado sem causa, mas como uma possibilidade do desejo mediado pela lucidez: feliz é aquele que tomado pela lucidez busca a realização de si mesmo por mediação. 

Mas, isto não parece ainda impossível, uma vez que a mediação implica dependência e esta, por sua vez, não se acha assujeitada às tantas e confusas demandas que não conseguiríamos dar conta de todas elas? De fato, esta parece uma condição de impossibilidade; não obstante, é desesperadamente esperançosa. E isto é inteiramente possível. E, assim, para ser feliz é, pelo menos, numa tentativa de aproximação, ter o que desejamos. Não realizar todo o desejo que nos é abundantemente disponibilizado, mas buscar realizar abundantemente todo desejo que nos é possível.







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